Para aproveitar lançamento d’O Esquema Fenício, novo filme de Wes Anderson, decidimos resgatar um texto que publicamos em janeiro de 2022 sobre outra das mais recentes produções do diretor: A Crônica Francesa. O uso da tipografia como elemento narrativo no filme é incrível, e deve muito a uma designer específica, que colaborou com Wes Anderson na maioria dos seus filmes: Annie Atkins, especializada em design gráfico para cinema.
O Wes Anderson tem se tornado uma figura intrigante para mim (mais do que antes). Parece que virou uma referência tão difundida e óbvia, que agora o novo legal é falar mal dele. Já perdi as contas de quantas vezes eu ouvi ou li a frase “Wes Anderson se tornou uma paródia dele mesmo”.
Além de ser forte candidata a virar um clichê, ainda acho a frase equivocada. Tudo bem, admito que ainda não vi O Esquema Fenício, mas antes dele veio o Asteroid City, que não tem nada de paródia, na minha opinião. O filme traz temas e até gêneros novos para a filmografia dele (por exemplo, explorações de sci-fi que ele nunca tinha feitos antes e uma ambientação com um toque de western). Para mim, Wes Anderson segue sendo um criador muito interessante de acompanhar.
Relembrando, hoje em dia, o texto que você vai ler na sequência, acho engraçado que, na época, eu já falei de cara que não gostei do filme. Hoje, nem lembro mais o motivo disso, mas certamente tenho vontade de rever e tirar a prova.
As letras de Wes Anderson (& Annie Atkins)
Texto publicado originalmente em 17 de janeiro de 2022
Recentemente, assisti “A crônica francesa”, décimo longa metragem do diretor Wes Anderson. Sendo bem sinceiro, não fiquei muito fã. Felizmente, isso não interessa. Se o filme como um todo não me agradou tanto, os letterings contidos dentro dele me encantaram o suficiente para dedicar uma edição desta newsletter.
Obcecado pelo visual e pela direção de arte dos filmes, não é coincidência que a única “designer gráfica para cinema” conhecida no mainstream do meio do design seja uma colaboradora de Wes Anderson. Annie Atkins é a designer responsável por tudo que envolve design gráfico nos filmes do diretor. Desde o cartão postal que aparece na mão de algum personagem ao letreiro de uma loja que aparece por um segundo no fundo desfocado. Aliás, segundo ela, qualquer coisa que seja exibida por um segundo na tela já é lucro, porque 95% do trabalho dela sequer é visto pelo público.
Nesses filmes, toda a riqueza tipográfica sobre a qual comentei é executada pela Annie Atkins, que em parte desenha e em parte lidera o departamento de design gráfico das produções. O trabalho dela é basicamente criar objetos cenográficos (os chamados “props” – sem uma tradução muito direta para o português).
Esses objetos ou vão fazer parte do cenário de uma cena ou vão participar ativamente dela, através da interação direta com os atores (esses são os chamados “hero props”, o crème de la crème desse trabalho de design para cinema).
Como boa parte do trabalho é projetar impressos (documentos, mapas, postais, cartas, cartazes, notas, bilhetes, passaportes), muito do trabalho é tipografia.
No caso dos filmes do Wes Anderson, o que mais me interessa nesse trabalho é que a designer está sempre tentando, simultaneamente, reconstituir e imaginar uma época específica.
Não dá para dizer que são filmes “de época”, porque não possuem exatamente uma preocupação histórica, mas sempre remetem ao passado. Ao mesmo tempo, estão contidos num universo próprio, o que dá ao design a licença criativa de não ficar submisso às referências históricas.
Quando tenta recriar uma época, o designer busca um resultado que seja crível para o contexto, não que seja necessariamente o resultado mais bonito ou melhor finalizado. Sobre letreiros, por exemplo, Annie Atkins diz: “Eu tento imitar um pintor de letras da época, mas talvez um que não fosse o melhor pintor de letras da cidade”. Ela ainda define seu trabalho dizendo: “Minha especialidade é fazer letterings que não pareçam muito corretos” (me identifico muito com essa parte, aliás).
Em “A crônica francesa”, é contada a história de uma revista francesa (TheFrench Dispatch), supostamente inspirada na New Yorker. O filme é dividido em alguns segmentos, contando três histórias diferentes (e não relacionadas) que foram publicadas na revista. As histórias não são datadas individualmente, mas conseguimos saber que se passam entre as décadas de 60 e 70 do século XX.
De todos os filmes do Wes Anderson, esse foi o que mais me impressionou visualmente. Imagino que boa parte da razão para isso sejam justamente os letterings, que eu ficava notando nos detalhes enquanto esquecia de prestar atenção no enredo.
Abaixo, comento alguns dos letterings e fontes que me chamaram atenção no filme:
O logotipo do filme é também o da revista dentro do filme. Adoro a pegada de letreiro do século passado, com as letras encaixadas uma a uma no suporte de metal. Gosto também que ele tem uma energia imponente e até meio glamurosa (acho que isso vem da “iluminação” – as bolinhas brancas), mas ao mesmo tempo meio errado, fora do lugar, esquisitinho. Acho que funciona como um ótimo resumo da história.
Mas o que eu gosto mesmo é o kerning todo errado. Repara no espaço gigante entre ‘E’ e ‘N’ em “French” e entre ‘P’ e ‘A’ em “Dispatch”, por exemplo. É o tipo de detalhe que parece minúsculo, mas que é essencial para passar a ideia correta. 10/10.
A cartela que inicia cada segmento simula uma página da revista impressa. Uma ótima solução, considerando que geralmente a divisão de capítulos em filmes se limita a uma tediosa tela preta com letras brancas.
Aqui, a fonte do título me parece a Gill Sans, clássica do século XX. Um detalhe bem acertado é o uso, nos intertítulos e legendas, das aspas francesas – essas que ficam ao lado das palavras e com um espaço entre elas.
Adoro esse quadro do filme. Os letreiros são muitos, mas bem espalhados, sem roubar a cena. Também acho que aqui temos um bom exemplo do que a Annie Atkins fala sobre tentar imitar um sign painter que não fosse o melhor da cidade. “Pains grilles” aqui é um lettering bonito, mas também meio frouxo. Dá para ver a espontaneidade do manual em letras como o ‘S’ em “Pains”, que parece caindo para a direita.
Também é interessante ver a quantidade de estilos diferentes num só quadro, dos mais rebuscados aos mais rígidos. Isso me faz pensar em como o trabalho de pesquisa para um projeto desse deve ser divertido. Ao mesmo tempo em que ele exige uma consistência com o período estudado, também permite um monte de liberdades. Toda cidade é, por natureza, inconsistente com seu design. Ainda mais o vernacular. É a desculpa perfeita para estudar e desenhar estilos muito diferentes e colocar um do lado do outro, sem ficar pensando muito em regrinhas de pareamento de fontes.
Tipografia ajudando a mostrar a passagem do tempo: gostamos.
Não consegui identificar a fonte das legendas dentro do filme, mas adorei a escolha. As letras maiúsculas são mais pesadas que as minúsculas, o que dá uma textura ótima de impressão irregular.
A segunda história contada em A Crônica Francesa é sobre um movimento estudantil na cidade fictícia do filme, Ennui. A história é claramente inspirada nos movimentos de maio de 1968 em Paris. Nessa universidade (que, podemos supor, é inspirada na tradicional Sorbonne), o letreiro cai muito bem. Capitais romanas clássicas (tipo a fonte Trajan – repare no ‘E’ estreito e a perna alongada do ‘R’, por exemplo), com a imponência que um prédio desse tipo teria. Escolha perfeita.
Talvez esse seja meu uso favorito de letras no filme. Cartazes de protesto são um tema sensível para designers (bom, para mim é, pelo menos). Eles são a manifestação mais forte da ilusão do design como atividade de impacto social (ilusão essa que todo designer gosta de ter). Eles têm de ser simples, mas explosivos. Se forem escritos à mão, ainda têm o adicional de serem a manifestação direta do estado de espírito da pessoa que protesta. Eu amo cartaz de protesto. Aqui temos alguns que estão no ponto: uma ilustração simples, lettering à mão, uma cor. Perfeitos.
Ainda rodeiam um lettering do qual gostei muito também, o “Chambres de Jeunes Filles”. Gosto como as palavras – de diferentes tamanhos – estão blocadas e de como as letras brincam com a largura para ocupar o máximo de espaço entre uma janela e outra.
Mais fachadas de loja, porque nunca cansam.
O filme ainda tem muito mais “props” tipográficos interessantes, mas seria impossível mencionar todos. Como falei, me interessa tanto a pesquisa quanto o resultado que vemos na tela, então o ponto também era apresentar o trabalho da Annie Atkins, além de falar do filme.
Sobre a pesquisa e o trabalho de recriar coisas que já existiram, ela diz numa entrevista: “Não dá para comparar minha imaginação com a imaginação coletiva de todos os artistas e artesãos que vieram antes de mim.”
Como o design ainda tem um fetiche com a originalidade e a autoria, sempre gosto de designers que nos lembram que a excelência também vem da referência e da repetição.