“Central do Brasil”, uma relíquia para o design vernacular
Assista a esse clássico brasileiro através dos seus letreiros
Seguindo a ressaca do hype de “Ainda estou aqui”, combinei com um grande amigo de assistirmos “Central do Brasil” para nosso cineclube de duas pessoas. Central é o filme do mesmíssimo Walter Salles que acabou de ganhar o Oscar e com a mesmíssima Fernanda Montenegro que também está no filme mais recente do diretor.
Eu já tinha assistido “Central do Brasil” algumas vezes, mas já há vários anos. Ainda lembrava do arco geral da história da Dora (Fernanda Montenegro) cruzando o país com o Josué (Vinícius de Oliveira), mas não dos detalhes.
E, definitivamente, não lembrava da quantidade de letterings interessantes que aparecem no filme.
Caso nunca tenha assistido: o filme acompanha Dora, uma ex-professora que escreve cartas para pessoas analfabetas na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e Josué, filho de uma das clientes de Dora. Depois da morte de Ana, mãe de Josué, Dora acompanha o garoto em uma viagem pelo Brasil para encontrar seu pai.
Mas muito mais interessante do que eu contar a história, é mostrar a história. E eu vou fazer isso usando toda a tipografia vernacular que compõe o filme.
Além de se passar nos anos 1990, o filme acontece praticamente inteiro em em contextos de classes sociais baixas, então a grande maioria das letras que aparecem na tela são pintadas à mão, ao invés de impressas.
Antes de entrar nas tipografias vernaculares dentro do filme, vale comentar o título, que também é muito interessante. O filme gira muito ao redor de cartas, então faz muito sentido o título ter uma escrita cursiva. Mas ele não é apenas é escrito à mão. É também carregado de emoção, trêmulo, irregular. As letras maiúsculas têm um peso muito diferente das minúsculas, mas mesmo entre essas também há variação na espessura das letras.
Parece até que poderia ser feito por alguém que não tem muita intimidade com a escrita — como é o caso de boa parte dos personagens —, mas que ainda assim tem muito a falar.
A fonte dos créditos segue o tema da caligrafia manual, mas agora já parece uma escrita que realmente poderia estar em uma carta, lembrando a letra da própria Dora.
Agora sim para a parte interessante: os letreiros que aparecem no cenários do filme. Aqui já estamos na Central do Brasil, na mesa de trabalho da Dora.
A sua plaquinha é feita com estêncil de verdade (não uma emulação do visual estêncil, como é muito comum hoje), daqueles alfabetos que podíamos comprar em uma folha de acetato.
Adoro o logo d’O Reizinho: é simples, porém com personalidade. Além do esquema “versal-versalete”, ou seja, uma letra maiúscula seguida de letras que também tem a forma de maiúscula, só que em tamanho menor, ele ainda mistura umas formas de minúscula no meio (‘e’ e ‘i’ são desenhadas como minúsculas, mas na mesma altura das vizinhas).
Esse painel é um parque de diversões para os fissurados em letras. Veja como as letras se adaptam às larguras disponíveis. Palavras grandes, letras estreitas. Palavras pequenas, letras largas. E, apesar de algumas variações, o estilo mantém consistência surpreendente em todos os letreiros, apostando em traços retos e formas quadradas nas letras.
O quadro está muito fechado e a placa, fora de foco. Mas parece que temos uma colagem de letras aqui? O ‘R’ em “NA HORA” também é um destaque à parte.
Essa é uma das cenas mais visualmente interessantes do filme: Dora e Josué saem ao mesmo tempo do banheiro, cada um de lado, vestindo as roupas novas que compraram na estrada. É engraçado que o lettering de “Masculino” começa com um ‘M’ bem largo e termina com um ‘O’ estreito e ligeiramente mais baixo que o restante. Talvez o letrista tenha ficado sem espaço no meio do caminho?
Também é incrível que os ícones e as setas mantenham a coesão visual de todo o resto.
Aqui parece que estamos diante do trabalho de um pintor de letras experiente e com um estilo próprio. As letras nas paredes do restaurante são rebuscadas e com detalhes decorativos. Um detalhe precioso é a palavra “Caixa” seguir a curva da janela.
Mas problemas de espaço acontecem nas melhores famílias. No canto superior esquerdo, a palavra “preferência” tem um espaço grande no meio da palavra, em “E F E”, o que fez o final da palavra, “CIA”, ter que ficar apertadinho.
Duvido que você conheça um banheiro mais elegante e didático do que esse. Aqui, o estilo que estava nas paredes do restaurante fica mais claro e refinado: as letras são onduladas, e os topos e bases seguem um ângulo consistente de mais ou menos 45°, provavelmente feitos com um pincel chato.
Mas, para mim, o ouro mesmo são os detalhes em ‘A’ e ‘Q’: na primeira, a haste esquerda que foge da curva da direita e segue até o topo da letra; na segunda, o rabinho centralizado, mas ainda ondulado.
Veja como esse estilo é realmente uma assinatura do pintor que fez esse trabalho. Todas as letras ‘A’ aqui têm o mesmo estilo da que vimos na imagem anterior.
O meu favorito: lettering de trás para frente na parede, para aparecer correto no espelho. Toque de gênio!
Lembra das letras quadradinhas lá na lanchonete na Central do Brasil? Aqui já estamos bem longe de lá, no interior de Pernambuco, mas o estilo é parecido. Para letras pintadas à mão, esse é um recurso simples e elegante para facilitar a consistência no desenho.
Olha que legal as letras inclinadas na parede. Será que elas vieram depois que aquele pedaço de tinta do lado direito caiu e o texto foi feito assim para caber no espaço que sobrou? Aqui não são as letras, mas o texto inteiro que está italizado!
A partir de agora, você vai poder se maravilhar comigo com o branding da “Viação Estrela do Norte”, empresa dos ônibus que transportam Dora e Josué. Vê aquele logo na terceira pilastra? Ele ainda vai aparecer várias vezes, e sempre com o mesmo símbolo (que também é sempre um pouquinho diferente, claro), tudo pintado à mão.
Mais uma vez, a variabilidade orgânica que o desenho à mão permite: volte na imagem anterior e veja como, pela largura da pilastra, naquela situação as palavras que formam o logo estavam empilhadas. Agora, com espaço maior, elas aparecem na mesma linha.
Uma pausa no show da Estrela do Norte para esse lettering também incrível: formas cursivas minúsculas (‘L’ e ‘O’) misturadas com maiúsculas de bastão.
Ela voltou! E agora com dois símbolos em uma mesma aplicação, só para tirar uma onda. Um deleite para os fãs da Viação Estrela do Norte como eu.
Para quem gosta da fonte “Bauhaus”, encontrei uma ainda melhor.
As últimas letras que vemos no filme, como não poderia deixar de ser, são das mãos da própria Dora, amarrando o final da história com o começo.
Outra coisa que me chamou a atenção foi não só a forma das letras, mas também o vocabulário. Várias vezes ao longo do filme vemos frases na famosa voz passiva sintética, para quem lembra das aulas de português: escreve-se cartas, faz-se móveis, vende-se frango e por aí vai.
Não sei você, mas faz muito tempo que eu não vejo uma construção verbal desse tipo. Ou seja, os comércios, as casas e o próprio desenho das letras podem ser os mais simples possíveis, mas a linguagem é uma que a gente até consideraria mais formal do que simplesmente usar a terceira pessoa do plural. Não é curioso isso?
Bom, de um jeito ou de outro, “Central do Brasil” é um retrato muito rico de um Brasil de outra época (inclusive, com semelhanças não muito felizes com o Brasil de hoje) e que vale a pena ser revisitado.
Por mais letras pintadas à mão e mais Viações Estrela do Norte!
Obcecada pelo urine aqui rebuscado
Vários amantes da tipografia já participaram de "safaris" por espaços urbanos, observando a presença de tipos, letreiros e escritas caligráficas em edifícios, casas, muros e monumentos. Seu texto fez lembrar essa experiência. Então, Valter, ao final do passeio tipográfico pelo filme que você oferece com suas palavras, deixo meus aplausos.