O que é mais assustador do que uma fonte sem serifas? 👻
O medo pode estar onde você menos espera
Se alguém te pedir para imaginar um cartaz de filme de terror, você provavelmente não terá dificuldades em juntar na sua cabeça alguns elementos característicos do gênero. Talvez uma criatura assustadora, uma sombra dramática, uma máscara, sangue, partes do corpo, facas, zumbis. Enfim, as possibilidades são muitas, mas você sabe muito bem a sensação que o cartaz de um filme de terror transmite.
Nesse exercício, é claro que você também precisa acrescentar um título a esse filme imaginário. E um título precisa de quê? Exatamente: letras. Também não vai ser muito complicado imaginá-las. Você deve estar pensando em algo como letras escorrendo, escritas com sangue, pontudas, irregulares, trêmulas, desconfortáveis — certo?
Bom, o exercício foi simples, mas será que o resultado onde chegamos é preciso? Conseguimos representar bem o gênero do terror com esses elementos gráficos? Mais importante: conseguimos representar bem o gênero de do terror de hoje em dia com esses elementos?

Usando esses clichês, provavelmente não seremos contratados de nenhum estúdio para trabalhar em um filme de terror atual.
Quando olhamos para o cenário atual de filmes de terror, um padrão interessante aparece nos cartazes: de maneira geral, eles usam poucos elementos que “denunciam” o gênero. Ou seja, esses posters não contam para o público, de cara, que se tratam de filmes de gênero.
Naturalmente, esse fenômeno se reflete também na tipografia dos cartazes, que é onde vamos focar aqui.
Para isso, vamos usar a lista do perfil oficial do Letterboxd, rede social focada em filmes, com os 10 melhores filmes de terror de 2024 até agora.
De todos os filmes da lista, apenas um usa, no cartaz, uma fonte bem display, tortuosa, exagerada e que lembra os clichês de terror. Não por acaso, é justamente o filme que também é uma comédia e justamente brinca com os estereótipos do gênero. Em Dead Tatlents Society (dirigido por John Hsu), os fantamas do mundo subterrâneo de Taiwan tentam impressionar os vivos com suas performances fantasmagóricas para se tornarem lendas urbanas na região.
Em I saw the TV glow (dirigido por Jane Schoenbrun), o lettering até que é bastante expressivo também, mas de uma forma muito diferente. O desenho dele tem uma inocência que poderia ser levada para um filme de “coming of age”, por exemplo, e ainda funcionar bem.
Não à toa, esse é exatamente o caso, pois o filme acompanha adolescentes que relembram um programa de televisão antigo, que assistiam quando criança, e reabrem alguns mistérios envolvendo o programa.
Nesse caso, o lettering se encarrega do lado “pueril” do filme, enquanto a imagem do cartaz aborda o seu lado sombrio.
De resto, os filmes da lista — uns mais, outros menos — usam fontes até bem contidas, considerando o tipo de aplicação a que elas estão servindo. Elas não saltam muito aos olhos, não assustam, e a maioria não dá nenhum spoiler sobre o tipo de filme que representam.
Podemos especular alguns motivos para explicar o fenômeno de “neutralização” dos cartazes de terror. O motivo mais óbvio é que os recursos clássicos de cartaz de terror acabam se tornando clichês. Sendo clichês, eles deixam de ser interessantes, então é natural que haja uma variação na abordagem deles ao longo do tempo.
Outro aspecto sobre o qual podemos pensar é que o gênero de terror cresce a cada dia, deixando de ser um gênero de nicho. Uma matéria do The Washington Post analisa esse crescimento, mostrando como os filmes de terror vivem o seu melhor momento comercial. Entre 2013 e 2023, o gênero dobrou sua fatia do mercado de bilheterias.
O mesmo texto, assinado por Jen Yamato, ainda aponta o potencial potencialmente negativo desse mesmo sucesso, que é o de limitar a criatividade do terror, historicamente conhecido por ser um gênero muito inventivo, capaz de produzir grandes obras com orçamentos baixos.
Em relação ao design, podemos imaginar que isso tenha alguns efeitos. De um lado, um cartaz não precisa anunciar que se trata de um filme de terror para encontrar seu público. O filme de terror já está integrado ao circuito e o público já está acostumado com ele, então essa comunicação não precisa ser muito na cara.
Do outro lado, os cartazes podem estar caindo no mesmo dilema dos próprios filmes: ser mais difundido também pode significar ser mais institucional, mais engessado.
Resumindo: o terror não precisa mais “inventar moda” para chocar, chamar atenção ou ser consumido, embora muitos filmes (e cartazes) muito criativos continuem sendo produzidos. Não podemos ignorar esse mérito.
A substância é feita de letras
O primeiro filme da lista do Letterboxd (como o mais bem votado entre os usuários da rede) e possivelmente o mais comentado do ano — não só entre os filmes de terror — é A Substância, dirigido por Coralie Fargeat.
Nele, Elizabeth Sparkle (Demi Moore), celebridade de Hollywood, passa a ser considerada velha demais para a televisão assim que completa 50 anos de idade. Em crise com seu corpo — em grande parte, por uma pressão imposta pelo produtor do programa que ela apresenta —, Elizabeth descobre uma tal substância secreta capaz de fazê-la viver como uma versão mais jovem do seu próprio corpo (que é a personagem Sue, interpretada por Margaret Qualley).
A única regra que a Elizabeth deveria seguir para funcionar o esquema de rejuvenescimento é que ela só poderia fazer isso durar uma semana por vez, e depois voltar para seu corpo “matriz” por uma semana também, ou daria ruim na substância se ela tentasse exagerar na dose. Como você deve imaginar, dá um ruim grande.
No filme, a tipografia é um elemento muito importante, pois ela identifica de forma muito marcante o produto da substância e suas diferentes partes.
Não só isso, mas as embalagens são praticamente o único ponto de contato que as personagens têm com o produto, já que ele é produzido por uma empresa absolutamente misteriosa, sem nome, que não oferece nenhum tipo de contato humano — a não ser uma voz curta e grossa no telefone quando a personagem da Demi Moore liga para tirar algumas dúvidas sobre as aplicações.
Mesmo a coleta das remessas semanais do produto é feita no melhor esquema auto-atendimento em um muquifo afastado, onde a personagem usa um cartão com um número que equivale à sua caixa de entrega.
A tipografia é uma parte tão central do filme que uma fonte customizada foi produzida para ele, pela FUGU prod. (@pointeaupointgilles). O desenho é de uma fonte sem serifas, condensada, bold e sempre em letras maiúsculas. Ela tem alguns detalhes singulares, mas o ponto principal é que ela é simples e impactante.
O seu estilo lembra muito algo associado a esporte e performance — letras duras e que preenchem bem o espaço onde são colocadas. E essa conexão não é nada distante do tema do filme, porque além da obsessão com o corpo, tema principal, tanto a Elizabeth, como a Sue (que substitui no papel) apresentam um programa de ginástica na televisão.
Como falamos lá atrás, essa fonte tem suas esquisitices. Veja a tela abaixo, por exemplo, com o título original. O ‘T’ tem a barra vertical mais pesada que a haste horizontal, quando deveria ser o contrário; o ‘H’ parecem muito mais estreito do que as letras ao redor; o ‘N’ tem uma massa muito maior do que o restantes das letras; por outro lado, o ‘C’ é muito arejado do que as outras letras; a barra média do ‘E’, que deveria ser a mais fina, é, na verdade, a mais grossa.
Enfim, ela tem particularidades aqui e ali. É possível que a direção de arte do filme tenha tentado usar esses elementos para passar uma certa estranheza. Mas a impressão que ela passa, de maneira geral, é de ser uma fonte bem direta ao ponto.
E por que, poderíamos perguntar, em um filme que tem orelhas caindo, partes do corpo explodindo, um corpo se multiplicando em dois, olhos com múltiplas pupilas e assim por diante, a fonte quer tanto ser limpinha e objetiva?
Bom, é evidente que ela se refere à promessa do produto, e não ao momento em que ele deu errado. Mas o ponto é que a própria promessa já é meio torta, ela já nasce errada. Só que ela se disfarça de salvação.
Nós começamos o texto falando sobre como os cartazes atuais de filme de terror não usam recursos gráficos que entendemos como “aterrorizantes”. Saem os letterings espalhafatosos e entram as fontes mais tímidas. Mas o grande ponto é que isso não significa que essas fontes não possam transmitir medo, em alguma medida.
No caso de A Substância, o fato de a fonte ser limpinha não remove o medo dessa comunicação gráfica. Pelo contrário, ela acrescenta. Ela causa desconforto por representar uma empresa muito tecnológica, “clean” e desumana ao mesmo tempo.
Nela, não existe contato humano porque não existe ninguém a quem recorrer se algo der errado. Enquanto ela promete realizar o sonho de uma pessoa voltar a ser jovem e desejada, larga a mesma pessoa à própria sorte, colhendo só os efeitos colaterais daquela promessa de melhoria.
Ou seja, aqui o que assusta não é o sangue jorrando, é a frieza. É a possibilidade de alguém destruir sua vida sem ser responsabilizado por isso, e ainda saindo como o “limpinho” da história.
Inclusive, a própria Demi Moore, em entrevista, afirmou que a cena mais violenta do filme é uma que não envolve sangue nenhum. É quando o Harvey (Dennis Quaid), chefe de Elizabeth, conta pra ela que o tempo dela já passou, enquanto destrói alguns camarões de almoço da forma mais grosseira possível. Esse é o melhor exemplo de como a violência e o medo aparecem também na sua versão corporativa, de terno.
Nosso estudo de caso foi sobre o filme A Substância, mas outros insights poderiam sair dos cartazes dos outros filmes da lista também. A questão que nos interessa é que o fato de o terror não aparecer muito na nossa cara não quer dizer que ele não esteja à espreita, se manifestando de outras formas.
Bônus: toda categoria é criada
Essa conversa sobre filmes de terror e quais recursos gráficos podem gerar medo levanta outra debate interessante, que é o seguinte: geralmente, no design, trabalhamos com adjetivos que servem de baliza para o nosso trabalho. Por exemplo, podemos escolher uma fonte por ser “elegante”; um esquema de cor pode parecer “leve” ou “reconfortante”; podemos buscar um layout “intenso”, “nostálgico”, “vibrante”, “caloroso” ou qualquer outra qualidade que você imaginar.
Todas essas categorias são muito úteis para termos onde basear (e defender) nossas criações. Mas, de vez em quando, vale lembrar que elas são sempre situadas, dizem respeito ao que estamos discutindo aqui e agora. Essas características que colocamos nos objetos não nasceram com eles. Nossa percepção delas muda com o tempo, com o lugar, com a situação.
Isso para dizer o seguinte: as fontes, por elas mesmas, não são “assustadoras” ou “aterrorizantes”, nós criamos essas categorias em algum momento e nada impede que elas mudem.
Esse ponto complementa o que viemos falando até aqui. A própria ideia do que é um design de terror muda com o tempo, porque nós também passamos a ter medo de outras coisas. Hoje, uma corporação super tecnológica pode ser mais horripilante do que qualquer zumbi, por exemplo.
O legal de olhar para esses cartazes e os filmes atuais é justamente entender de que tipo de angústia eles estão tratando, e como elas se relacionam com o que vivemos hoje em dia. É claro que zumbis e monstros sempre vão existir na ficção, mas os temas também se atualizam e acompanham nossos anseios a cada época.
No final das contas, o clichê do cartaz de monstro super pode funcionar e, inclusive, pode até voltar a ser moda. Mas um design e uma fonte menos gritantes também podem transmitir várias sensações de terror, dependendo de como forem trabalhados.