Tipografia nos quadrinhos: os mundos de Chris Ware
Entre a explosão e o silêncio, as letras ganham vida própria no trabalho do quadrinista
Se tem uma mídia que amplifica as possibilidades da tipografia, são as histórias em quadrinho. Nelas, as letras são textura, cor, narrativa e até som – tudo ao mesmo tempo. Se você pensou em onomatopeias, estamos no caminho certo. Mas a tipografia ainda tem dezenas de outras funções na nona arte.
Ela é a voz dos personagens e, muitas vezes, também o ambiente deles. Em última instância, a tipografia pode ser usada para criar mundos complexos. E falar de mundos complexos nas páginas é falar de Chris Ware. O quadrinista americano é um dos maiores da história, conhecido por um estilo meticuloso e obsessivo.
Fora de contexto, um quadrinho único de Chris Ware pode ser definido como simples, sem muitos detalhes, talvez, até, sem muita expressão. Mas o que define sua obra é a composição das imagens, não o apelo estético de frames isolados.
Ware chega a dizer, inclusive, que ele tenta fazer com que os quadros dele sejam o mais desinteressante possível, para que a história possa se destacar sobre a representação visual. Obviamente, essa é uma tarefa na qual ele falha: o fato de que seus quadros são muito objetivos não fazem com que eles deixem de ser interessantes.
O estilo de Chris Ware lembra um pouco o traço de desenhos de instruções de segurança: muito iluminado, muito preciso, com linhas regulares e, aparentemente, sem emoção. Claro que, aqui, o “aparentemente” é muito importante – é na leitura, e não na simples observação, que a emoção aparece.
Talvez a emoção até venha, nesse traço, com maior força do que em estilos mais dramáticos. Os desenhos de Ware não estão tentando nos emocionar e, por isso mesmo, eles ficam ainda mais carregados.
Criando imagens para serem lidas, e não vistas, o próprio Chris Ware afirma que seu trabalho tem mais a ver com tipografia do que com desenho clássico. Essa noção de imagens lidas se mantém mesmo no período em que ele eliminou todas as letras dos seus quadrinhos. Segundo o autor, ele queria que as imagens dissessem tudo, sem ele precisar falar para o leitor (o famoso “mostre, não conte”).
Para a nossa sorte, isso foi apenas uma fase no seu trabalho, porque, no restante dele, Chris Ware é um grande tipógrafo e letrista também no sentido literal dos termos.
Dos personagens às letras dos balões de fala, passando pelos impressionantes desenhos de arquitetura, Chris Ware faz tudo à mão, com lápis e papel.
Se não fosse quadrinista, o autor ainda poderia ganhar muito dinheiro como designer de logotipos. Ele desenha também os títulos da suas histórias, e muitas das suas composições tipográficas são tão complexas quanto seus desenhos. Ware se inspira, principalmente, em embalagens e jornais do início do século XX, mas chega também a trabalhar com estilos vitorianos, do final do século XIX.
O nível de obsessão que Ware coloca nos seus personagens também se estende às suas letras. Algumas de suas revistas recorrentes, por exemplo, ganhavam logos novos a cada edição.
Por falar nos seus personagens, não é preciso nem conhecer as histórias a fundo para entender suas personalidades. Além das feições deles, as letras nos balões de falas já nos dão todas as dicas que precisamos para começar a entender essas pessoas.
Nos quadrinhos de Ware, os textos dos balões são pequenos (sendo até difíceis de ler, em algumas situações), contidos e trêmulos. Por esses motivos, são a representação perfeita de quem os fala: seus personagens também são contidos, além de inseguros, como se estivessem sempre expondo fragilidades.
Até suas onomatopeias parecem não ser tão expansivas quanto seus tamanhos e significados sugerem. Em Chris Ware, é possível pensar em algo como uma explosão silenciosa.
Ainda há um outro tipo de letra no seus quadrinhos. Aquelas que estão fora dos quadros, soltas nas páginas, seja compondo uma cena, fazendo explicações ou mostrando falas e pensamentos dos personagens que romperam com os limites dos balões.
Um outro aspecto que devemos reparar no seu trabalho é que, muitas vezes, as histórias não têm uma ordem correta de leitura. É colocada para o leitor a responsabilidade de decidir onde a história começa, onde termina, e como ela se desenvolve no meio, de forma que cada leitor lê uma história diferente, ainda que tendo o mesmo livro em mãos.
Chris Ware gosta desse recurso porque, segundo ele, isso espelha a vida, também sem ordem, desfrutada por cada um de uma maneira diferente.

E a tipografia também faz parte desse esquema de quebra da ordem cronológica dos quadros. Ela entra aqui para organizar as cenas, certo?
Na verdade, não. Pelo contrário, ela serve para confundir ainda mais. Esse é um exercício bem sofisticado de leitura, porque não são as letras individuais brincam com a legibilidade, mas a própria composição que não te diz que caminho seguir para ler um texto.

Chris Ware diz já ter sido convidado a transformar suas letras em fontes, ideia que ele detesta. Para ele, elas são suas histórias, naquelas composições e contextos específicos, não um kit de ferramentas que poderia ser usado em qualquer lugar, por qualquer um. É uma pena que nunca possamos ter um lançamento tipográfico de Chris Ware, o que seria incrível, mas também não dá para não admirar a forma como ele é dedicado à página; ao específico, ao mundo em que seus personagens vivem. Suas letras não devem sair dali.
Embora seja capaz de criar páginas e mais páginas de quadrinhos sem uma letra sequer (como faz várias vezes, inclusive), ele ainda trata imagem e lettering no mesmo nível de importância. Daria para dizer — já quase um clichê — que aqui as letras se transformam em imagens. Felizmente, Chris Ware nos oferece uma conclusão muito mais interessante: nas suas páginas, as imagens é que se transformam em texto.
Que alegria encontrar sua análise! Vi uma exposição do Chris Ware no CCCB recentemente e fiquei impressionada com a “crueza” do traço, ao mesmo tempo que o artista captava, perfeitamente, fatos da vida ordinária - de todos nós.
Uaaaau que incrível! Adorei conhecer esse quadrinista e seu texto foi maravilhoso de ler antes de dormir, com certeza terei um soninho mais criativo hehe ;)