Verão e inverno tipográficos na televisão
As séries do momento têm muito a falar sobre tipografia – mesmo quando ela não aparece!
Você provavelmente se lembra do evento “Barbieheimer” que aconteceu em 2023. Dois filmes praticamente opostos entre si, Barbie e Oppenheimer, foram lançados no mesmo fim de semana e, curiosamente, um acabou alavancando o outro — muitas pessoas fizeram até sessão dupla para assistir ambos no mesmo dia e sentir na máxima potência o contraste entre os dois.
Hoje, em 2025, algo parecido acontece, pelo menos na minha cabeça. Não existe um nome para o fenômeno do momento, mas deveria. Algo como “Severed Lotus” ou coisa do tipo. Estou falando, é claro, do lançamento quase simultâneo das novas temporadas das séries mais relevantes do momento, Ruptura (Severance, Apple TV+) e White Lotus (HBO/Max).
Elas já estão no ar ao mesmo tempo há algumas semanas, e ficarão assim até amanhã (21 de março), quando a segunda temporada de Ruptura se encerra, enquanto a terceira temporada White Lotus ainda segue por mais alguns episódios.
Assim como os envolvidos no combo Barbieheimer, Ruptura e White Lotus também são opostas em diversos sentidos. Na primeira, somos levados a imaginar como seria viver dentro do trabalho; na segunda, vivemos eternas férias.
A premissa de Ruptura é a de que os protagonistas passam por um procedimento que separa suas memórias entre trabalho e vida pessoal, o que essencialmente cria uma versão deles que está, para sempre, presa no escritório. Já nas três temporadas de White Lotus, acompanhamos as tensões sociais, sexuais e espirituais entre turistas americanos, moradores locais e funcionários em um resort de luxo, cada temporada equivalendo a uma semana de férias dos protagonistas.
Em Ruptura, é sempre inverno. Em White Lotus, é sempre verão. De um lado, neve e tristeza. Do outro, sol e coquetéis na beira da piscina. Trabalho escravo para uns, dinheiro infinito para outros.
E apesar disso tudo, ainda cabe a discussão: seria mais agradável viver no mundo de Ruptura ou de White Lotus? Isso porque, em White Lotus, as férias sempre acabam descambando para situações mais angustiantes do que qualquer trabalho precarizado.
Assim que Ruptura foi lançada, nós já escrevemos sobre a série, com foco no trabalho tipográfico da série. Vale ler o artigo original, mas um spoiler do argumento do texto é que nossa análise sobre a tipografia na obra foi, em grande parte, sobre como ela não está lá. Ou seja, foi mais sobre a ausência do que sobre a presença de letras naquele universo.
A série até mostra várias fontes, que compõem o branding da maligna Lumon, empresa protagonista da história. Mas essas fontes dificilmente ganham grande destaque, e o aspecto mais marcante desse ambiente de trabalho é justamente a brancura das paredes no escritório labiríntico.
A sacada é que, para construir um mundo frio e impessoal, faz todo sentido não ter muitas palavras dispostas no ambiente. Por mais sem expressão que seja uma fonte, qualquer palavra escrita tem um calor natural pelo fato de estar comunicando algo.
Quando fontes finalmente aparecem na série, elas tentam espelhar a frieza de todo o ambiente. Ou vemos a Helvetica (nos créditos), ou, em algumas paredes do escritório da Lumon, letras quadradas, distantes, pouco expressivas.
Se, lá no começo, definimos a relação entre Ruptura e White Lotus como sendo opostas entre si, agora temos um semelhança entre as duas: White Lotus, também, é um mundo praticamente sem comunicação escrita. Só que, dessa vez, a proposta não é de criar um ambiente frio, mas sim um ambiente deslocado do resto do mundo, como se estivesse suspenso.
Os personagens mal saem do hotel durante sete dias, então o lugar se torna um microcosmo próprio. Outro tema digno de nota da série é que, não importa onde estejam, os turistas pouco se engajam de fato com a cultura local, fora algumas interações superficiais. Então faz sentido nós não vermos tanto da tipografia e idioma locais quanto esperaríamos.
Também pode haver aí um motivo mais pragmático: talvez uma série americana não queira se dar ao trabalho de inserir muita comunicação visual em uma língua que é estrangeira para o seu público.
O que dá para comentarmos é o logotipo da série, que é simples, porém bem encaixadinho com o seu conceito. E aqui voltamos às diferenças em relação a Ruptura, porque a tipografia do logo de White Lotus definitivamente não é uma neutra sem serifas.
A série faz muitas analogias com arte, com referência especialmente à arte clássica. Inclusive, as pinturas dos créditos de abertura da primeira temporada foram feitas por um artista brasileiro, Lezio Lopes (que é aracajuano assim como este que vos escreve, é importante notar!).
Tendo essa proposta, faz sentido que a série use a Trajan, fonte que replica as inscrições da Coluna de Trajano, basicamente o escrito fundamental da caligrafia romana, que definiu as bases para toda a caligrafia e, posteriormente, tipografia ocidental.
Embora faça sentido, essa escolha está longe de ser tão original quanto o roteiro da série. A Trajan já foi considerada a fonte, por excelência, de cartazes de filme, de tanto que já foi usada — muitas vezes, sem muito critério ou relação com a narrativa. Quem reparou isso foi o Yves Peters, designer especializado em cartazes, que fez um amplo levantamento sobre o uso da Trajan no cinema. Veja um vídeo onde ele comenta sobre a popularidade cinematográfica da Trajan.
De um jeito ou de outro, embora a tipografia não apareça tanto em Ruptura e White Lotus, ainda fazem um bom resumo dos seus universos ficcionais. Mais do que isso, são uma lembrança de que não apenas a escolha de fontes é importante para o design, mas também que a simples decisão de ter ou não (qualquer) tipografia em determinado ambiente é uma escolha com consequências grandes, e que deve ser bem pensada.
Ótima análise! Vou deixar a sugestão de aprofundar nos logotipos de cada série, especialmente de ruptura, que acho muito interessante 😉