Grandes letras fazem grandes filmes
Um aspecto subestimado das obras cinematográficas que amamos.
O design gráfico pode entrar em todas as etapas da produção de um filme, embora nem sempre isso seja lembrado, e não exista um Oscar ou Globo de Ouro para “Melhor Design Gráfico” (mas deveria!). Claro, cartazes de filmes são peças muito reconhecidas – inclusive, já falamos um pouco sobre eles aqui. Mas eles ficam do lado de fora da sessão. Não precisamos pensar sobre eles quando o filme está rolando.
Agora queremos falar sobre o design que faz parte do filme depois que as luzes se apagam e eu começo a lutar contra o sono que me persegue no escurinho de toda sala de cinema. Como não poderia deixar de ser, nosso foco vai ser a tipografia.
Existem duas formas de as letras aparecerem dentro de um filme: resumidamente, elas podem aparecer só para o público ou para os personagens também. Essa é a diferença entre elementos diegéticos e elementos não diegéticos (os diegéticos são os que fazem parte da realidade do filme e podem receber interação dos personagens).
Por exemplo, um letreiro na rua do cenário é um elemento diegético, já que os personagens podem ver ele também. Existe um universo inteiro de design para esse tipo de aplicação, mas hoje vamos falar do outro tipo, as letras que são reservadas para apreciação do público.
Estamos falando das "title cards", que não têm uma tradução exata para o português, mas que podemos chamar de "cartelas de títulos" ou "intertítulos" (um termo mais antigo).
De uma maneira ou de outra, as letras sempre tiveram o poder de resumir as sensações ou até as histórias dos filmes. Mesmo quando elas não fazem parte da realidade interna de uma história, ainda são a melhor ferramenta possível para nos colocar, como público, dentro dela.
Para ser justo, nem sempre o título limita-se a resumir o filme, como um logotipo resumiria uma marca. Ele também pode provocar o público, confundir, apontar para um caminho diferente do que o espectador esperava, ou até dar um spoiler que ninguém sabe ainda que é um spoiler.
Eu lembro até hoje de como me marcou o título de abertura do filme "Her", dirigido pelo Spike Jonze. O filme conta a história de Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), que se apaixona por uma inteligência artificial. Hoje pode parecer uma premissa óbvia mas, na época, soava como o ápice do futuro distópico criado pela tecnologia. No entanto, já nos primeiros segundos de filme, o título subverte um pouco essa expectativa.
O lettering é o mais manual possível, e até “feio”: as letras são desniveladas, irregulares, inconsistentes. Então logo ali já está dito que a questão não é tanto assim a tecnologia. Os sentimentos de que a história trata são humanos, esse é o ponto. E ainda tem o sentido de que o protagonista trabalha em um serviço de escrita de cartas, então o manuscrito faz muito sentido.
No poster, a abordagem é bem diferente: o título do filme é composto em Helvetica, com o espaço entre as letras bem apertado. Isso nos leva a reparar em outro aspecto importante das cartelas de título: elas são vistas por quem já está vendo o filme, ao contrário dos cartazes, que ainda estão tentando convencer as pessoas a assistirem, então precisam passar uma ideia clara e apelativa.
Do outro lado, as cartelas já estão inseridas na própria narrativa, podendo tomar algumas liberdades diferentes (embora não seja incomum que a mesma fonte ou lettering seja usado tanto no poster, como na cartela de título).
Ídolos de peso
Parece que estamos vivendo um bom momento nos títulos cinematográficos, com cada vez mais estúdios se preocupando em usar esse recurso de forma interessante e designers responsáveis por esses trabalhos ganhando cada vez mais reconhecimento. Mas não podemos esquecer de algumas lendas que subiram muito o nível dos title cards décadas atrás.
Um dos designers mais celebrados da história, Saul Bass (1920-1996), construiu boa parte da sua carreira trabalhando para o cinema. Além dos cartazes icônicos, Bass ainda marcou seu nome para sempre na história dos títulos de filmes.
Aliás, falar de Saul Bass é um ótimo momento para lembrar que os títulos podem aparecer em cartelas (estáticas), ou em sequências, ou seja, aberturas animadas, que incluem os créditos iniciais — e que, infelizmente, já não são mais tão comuns hoje. Ele produziu algumas dessas, como para O Homem do Braço de Ouro (1955, Otto Preminger), Um Corpo que Cai (1958, Alfred Hitchcock) e Intriga Internacional (1958, Alfred Hitchcock).
Em Intriga Internacional, inclusive, Saul Bass fez o que é considerado o primeiro uso de tipografia animada em uma abertura, além de usar perspectiva para inserir os caracteres do créditos dentro da ambientação do filme.
Como se isso tudo não bastasse, Saul Bass ainda conseguiu ganhar seu próprio Oscar. Sim, enquanto a gente reclama que não existe uma categoria para premiar o melhor design de título, ele foi lá, fez um filme e ganhou. O prêmio veio na categoria de documentário curta metragem, pelo filme Why Man Creates, que Bass produz em 1968.
Outro gigante desse ramo é o Stephen Frankfurt (1931-2012), publicitário que também trabalhou para alguns clássicos do cinema. São dele, junto com Wayne Fitzgerald, os títulos de abertura de O Bebê de Rosemary (1968, Roman Polanski):
Não poderia existir exemplo melhor do que falamos lá em cima: os título podem até contradizer o sentido do filme. Nesse caso, a tipografia e cor vão na direção diametralmente oposta ao rumo que a história toma. Aqui o foco é na “feminilidade” e inocência que aparecem no começo da narrativa.
É como se o próprio filme não soubesse o que vai acontecer na sequência, então passa a sensação apenas do início. Ao mesmo tempo, o público sabe que essa chave vai virar em breve, o que só deixa tudo ainda mais assustador.
Novos defensores da causa tipográfica
Para ficar na terminologia de cinema, vamos dar o famoso jump cut agora. Pulamos dos anos 1960 para o presente. Guardadas as devidas proporções, onde estão os “Saul Bass” de hoje em dia?
O queridinho do momento é Teddy Blanks, designer nova-iorquino por trás da tipografia de várias produções recentes.
Ele desenhou, por exemplo, os títulos dos filmes Wicked (2024, Jon M. Chu) e Nosferatu (2025, Robert Eggers). Também é um colaborador recorrente da diretora Greta Gerwig, e trabalhou em Lady Bird (2017), Little Women (2019) e Barbie (2023) – esse que, inclusive, ganhou uma fonte customizada desenhada por Blanks.
Quem assistiu a Lady Bird certamente reparou na fonte do título: uma gótica com tudo que uma gótica tem direito. Não só o desenho da tipografia chama atenção mas, principalmente, o fato de que ela parece não ter nada a ver com o filme. Ao longo da história você entende que isso não é verdade, é claro. A tipografia fala da criação católica que a protagonista (a Lady Bird) tem, inclusive já dando um indício de que, por mais que ela lide de forma irônica com essa criação, tentando romper de vez com a adolescência para chegar à vida adulta, talvez ela esteja mais presa a essas raizes do que ela mesma imagina.
Recentemente, Teddy Blanks ganhou uma matéria completa de perfil no The New York Times, o que já indica como os designers de títulos estão começando a receber mais atenção do que de costume.
É claro que, para o olhar mais atento, o sucesso de Blanks já estava consolidado há muito mais tempo: foi quando um dos trabalhos dele virou tema aqui mesmo no Entrelinha! Em 2022, falamos sobre a tipografia na série Ruptura (Severance), na qual ele trabalhou.
Não é coincidência que muitas produções em que Teddy Blanks trabalhou sejam da produtora A24. Amada por uns e odiada por outros, a produtora conseguiu o raro feito de ter uma assinatura criativa reconhecida. Sabe aquele diretor ou diretora que você gosta e consegue identificar de longe uma produção desse criador? Agora imagina que uma produtora alcançou esse status. Essa é a A24.
Além de Lady Bird e Nosferatu, que já citamos, a produtora é conhecida também por filmes como O Farol, Midsommar, The Witch, Pearl, Moonlight, Zona de Interesse e Jóias Brutas.
Um das marcas da assinatura da A24 é justamente uma preocupação acima da média com o design.
Em The Witch (2016, Robert Eggers), um toque simples no título introduz brilhantemente o filme. Ao invés de escrever a palavra WITCH (bruxa) na grafia atual, o filme adota o VVITCH. Séculos atrás, a letra W não existia, e o som dela produzido com UU (por isso a letra tem o nome de “double U” em inglês), mas também poderia ser impressa como VV, e daí vem o desenho do W, que parece duas letras V grudadas.
Mesmo quem não conhece essa história, bate o olho e sabe que se trata de uma grafia muito antiga, então só com o modo de escrever o título, o filme já passou criou uma ambientação de folclore e ancestralidade, que são a base do terror de The Witch.
Nos filmes, a produtora também brinca com as letras do seu próprio logo, um recurso inteligente para se inserir na história, além de criar interesse já nos créditos de produção, um momento do filme que o público normalmente consideraria como descartável.
Outro criador que vale mencionar é Yorgos Lanthimos, diretor grego que cresce a cada dia em Hollywood. Assim como os filmes em si, a tipografia nas obras do diretor geralmente têm um toque — ainda que sutil — de experimentação, geralmente na direção de gerar algum desconforto. Na maioria dos seus filmes, Yorgos colaborou com o designer Vasilis Marmatakis.
Em A Favorita (2018), parece não haver nada muito notável nas cartelas tipográficas, certo? Dá até para dizer que é uma escolha conservadora de fonte.
A questão é que não é ela que salta aos olhos, mas o espaço em branco. O filme brinca com a distância entre as letras, e não apenas no título. A história é dividida em capítulos, e a introdução de cada um deles leva ao extremo essa brincadeira com o entreletra.
Claramente, o objetivo não é que a composição fique exatamente bonita. As palavras ocupam o mesmo espaço, enquanto o entreletra varia para compensar a diferença de tamanho entre elas. E se você já ficou com agonia daí, é esse mesmo o objetivo. A cada capítulo, uma composição maluca dessa surge na tela e o desconforto no cinema é real.
Em Pobres Criaturas (2023), a tipografia novamente rouba a cena, também separando o filme em capítulos (que, nesse caso, são divididos em cidades).
Poderíamos até traçar uma semelhança entre a escolha tipográfica desse filme e a da abertura de “Her”, que comentamos no começo. Mesmo dentro uma história sobre um experimento científico (ainda que de época), a fonte insere o aspecto de manualidade no visual do filme. Não só isso, mas ela claramente também tem um caráter de inocente, singelo.
O Entrelinha de Ouro
Não dá para falar sobre title cards contemporâneos sem falar de Saltburn (2023, Emerald Fennell), que certamente tem o maior feito tipográfico em aberturas de filmes nos últimos anos. O trabalho é da designer Katie Buckley, com assistência de India Paparestis-Stacey.
Não só a abertura é animada com um lettering estonteante, mas cada frame foi individualmente desenhado e pintado para ser gravado em stop motion, em um trabalho de meses de duração. Segundo a diretora Emerald Fennell, a abertura diz tudo sobre a história do filme: “uma beleza que nos leva à loucura”.
Não dá para deixar de pensar também que a própria animação tipográfica já conta uma história de começo, meio e fim. No início, ela parece uma história de fantasia, um “Era um vez” encontrado em algum livro antigo com uma capitular iluminada em ouro, e vai ganhando contornos mais sombrios com passagem do tempo.
Se o filme é bom ou não, aí já não é da nossa jurisdição (Voz em off – “Na verdade, eu nem vi esse filme”), mas não importa. O que conta aqui é que a tipografia de abertura merece todas as nossas estatuetas e louros.
Referência adicional
Infelizmente, o site que vamos recomendar agora já foi encerrado, mas uma boa parte do seu acervo continua disponível, e é uma referência indispensável para quem gosta de tipografia e cinema. Esse é o Art of the Title, trabalho incrível da editora e designer Lola Landekic e que, mesmo desativado há anos, nos ajudou imensamente na pesquisa para este texto.
Caramba, muito interessante! Amei a leitura 😄
Tô muito impactada, adorei ler esse texto! Achei muito interessante todas as informações passadas e, como falei no meu restack, me senti mais inteligente hahaha